O Rei da Colmeia

Paola Patassini

Publicação: Caleidoscópio 2000 – antologia de docentes da PUC-SP & convidados, Ed. Olho Dágua, São Paulo, outubro/2000.

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...”Amélia é que era mulher de verdade”...

(Ai, que saudades da Amélia - Ataulfo Alves e Mário Lago)

 

Ludibriano, chefe do departamento de antenas. De abelha em abelha, tornou-se o rei da colméia, mais pela capacidade estética de  combinar orgasmicamente o físico atraente com o ferrão, sempre ativo entre as próprias asas, do que pelo talento de dominar a linguagem geométrica dos casulos alveolares.

– Mél, providencie os potes!...

Ele dava essa ordem sempre na hora em que o sol se punha, as flores se fechavam e não havia mais tempo... E então era fácil acusá-la de operária limitada ou relapsa e esquecer que ele mesmo só batia as asas no jardim, chamando grande atenção para seus vôos acrobáticos e rasteiros, mas de modesto alcance.

 Ele não conhecia o segredo da transformação do néctar. Amélia sabia, então foi mais fácil, aos poucos, escravizá-la do que dividir com ela a essência da vida e ambos criarem meios de compartilhar, pelas antenas, a seiva com todos. Em uma equipe com divisão de responsabilidades e não aquela hierarquia feita de números e promessas estratégicas, em que figurava como rei absoluto, Ludibriano seria apenas mais um, talvez o menos criativo, incapaz de lidar com a sintonia das cores nas pétalas, que dão ao mel o sabor mais singular e essencial da existência. Como combinar, na filtragem da seiva, os complexos matizes apenas com a simplicidade do alcance de suas asas?

Os olhos claros, como os de um anjo de Auschwitz, traziam a luz nos labirintos hexagonais da colméia, confundindo, de modo autoritário, saídas democráticas e promovendo falsas aberturas que supostamente integrariam outras colméias, estabelecendo novas redes de contato. Assim eram forjadas as máscaras de cera de engajamento e abertura social e política que ocultavam as mesmices e formas de pensar sempre equacionadas no ontem. A fachada da colméia era de vidro, harmonizada com seus claros olhos vítreos de inseto desejoso de ser homem. Se tivesse que intitular aquela fase da sua vida, ela se chamaria Tentáculos...

– Mél! Vá pro fundo da colméia! E não saia de lá...

Ludibriano era uma fantasia. Amélia é que era de verdade. Mas o espírito da colméia necessita da ilusão para desenvolver a própria realidade.

Não basta meter o ferrão em cima de casulos, impor sentidos e signos, quando a metáfora do mel não é mais doce, adoece e amarga na colméia. As estações passam e levam primaveras tornando frio o olhar, limpando as lentes do ver, aquecendo a busca e o encontro.  Mentalidades em ação, amalgamadas como cera de abelha, descongelam icebergs, descobrem verdades por mais ocultas que emergem, enfim.

De abelha em abelha, o patrão zangado no seu vôo condenado de conquistas superficiais e passageiras, perdeu afinal seu ferrão e, como tudo o que havia em suas atitudes se firmava nesse objeto de desejo que centralizava seu poder de sedução, Ludibriano definhou, abortando a jornada do seu melhor-ser. Ele se supunha rei da colméia, mas era seu escravo, servo das abelhas que conquistava. 

O ferrão, os ferros, os grilhões...Os tempos mudaram e as abelhas não são mais as mesmas: despem-se do engodo das máscaras de cera. 

Amélia não era mulher de verdade, mas Ludi-briada/briana e encapsulada na última estação, transformara-se em uma abelha rainha. De repente, brincando com suas asas em um vôo matinal, percebera o brilho do sol que agora era diferente. De Ludibriano restara o Lúdico: as peças modificadas no jogo dos casulos hexagonais, agora se encaixavam livremente na arquitetura do sonho e do fazer. Havia ainda muito para ser mulher, mas o primeiro passo já estava dado.  Matar o zangão interior fora preciso: ele, que era seu reflexo, o lado avesso da realização. Patrão zangado e despótico. 

A cera derretera no verão, desnudando a terceira fac(s)e, a terceira consciência resultante da conflituosa crise das duas partes da colméia. Terminara o tempo do zangão e sua gélida máscara de cera. O ciclo se fechava renovando o olhar.

Era chegada a hora da flor. Desta vez haveria muito tempo para Amélia se dar para ser mel no nascimento da manhã. Junto à maciez das pétalas haveria transformação da essência suficiente para encher os potes de geléia real e começar a distribuição e a multiplicação de novas formas de pensar e construir favos, estabelecendo contatos antenados com colméias de outros jardins. Então, o mundo desenvolvido e civilizado dos humanos, despido das ilusões das aparências e dos podres poderes, seria finalmente uma possibilidade visível pelas janelas da colméia, pelas janelas de Amélia...

 

*Jornalista do CVC (Centro de Vivência Comunitária) e doutoranda do Pós em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Paulistana,  formou‑se em Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Cásper Libero. Foi membro da Academia Juvenil de Letras da Biblioteca Monteiro Lobato, tendo sido sua presidente e diretora da revista da entidade, “A Chama Acadêmica”, em 1975 e 1976. Nesses anos, recebeu o troféu “Rosa Brasileira”, como melhor acadêmica do ano e o troféu “Visconde de Sabugosa” pelo melhor livro em prosa de 1976:“Lua Vermelha”. Publicou, na “Folha de S.Paulo”, o conto infantil “Dona Vitamina C Contra o Poderoso Espirrão”, poesias no “Metrô News” e participou da “Associação dos Poetas de São Paulo”, na antologia Poesia, publicada pelo grupo em 1978. Participou de várias antologias da Editora do Escritor: “Em Revista‑7” (infanto-juvenil, 1979), Em Revista-14 (1982, com poemas), Conto, Raconto, Short-Story (1983, com o conto “Incestus”) e Todos por Um (1983, com a novela infanto-juvenil “Redondinhos e Quadradões”).  Obteve classificação e publicação do conto “Café Maravilha”, sobre a violência contra a mulher, no IV concurso de poesia e conto Mulheres entre Linhas do Conselho Estadual da Condição Feminina (SP) em 1988. 

Ao longo de sua carreira, tem publicado inúmeros artigos, inclusive acadêmicos, e atuado como jornalista free-lancer para instituições e Ongs, como a Rede Mulher e a Rede de Informação Um Outro Olhar.

Na PUC, tem participado das equipes de comunicação da APG (Associação de Pós-Graduandos) e dos conselhos editoriais da Revista da APG. Participou da equipe do jornal “Porandubas” e atuou na Assessoria de Imprensa da Universidade durante dez anos. Atualmente edita, com a Coordenação do CVC (Centro de Vivência Comunitária), o jornal Communicare,  ligado à Vice-Reitoria Comunitária e desenvolve tese de doutorado sobre representações míticas do feminino na mídia. É membro da União Brasileira de Escritores. (OBS.: Biografia elaborada em 2000 para a publicação)